Desenhos

21.11.06

O homem que não dormia














No telhado os sons habituais da noite, nem sempre identificáveis enchiam a imaginação. Pensamentos fugazes e a constante e invariável inquietação a arder eram as companhias do ranger da cadeira velha de madeira que balançava impaciente. Ele permanecia por horas daquela forma todas as noites contemplando o espetáculo das réstias de luzes na escuridão, sentindo a umidade da noite e saboreando sua xícara mais do que seu conteúdo.

Era difícil admitir, lidar e ainda continuar a abrir os olhos todos os dias, talvez por isso não podia dormir. Muitas outras coisas seriam mais fáceis, mas ele não podia faze-las, estava paralisado, sentia que podia ser diferente, mas ele era ele e então tudo seguia o mesmo.

19.11.06

Cântigo Negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"Eu olho os com olhos lassos,
(Há nos meus olhos ironias e cansaços)
E cruzo os braços,E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí!
Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque me repetis: "Vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?
Corre nas vossas veias sangue velho dos avós.
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!"

Texto:José Régio
Imagem: Desenho de Eduardo Souza

5.11.06

Sem título


















“Como não haveria de ser eu um

Lobo da Estepe e um mísero
eremita em meio de um mundo
de cujos objetivos não compartilho,
cuja alegria não me diz respeito!
Não consigo permanecer por muito
tempo num teatro ou num cinema.
Mal posso ler um jornal, raramente
leio livros modernos. Não sei que
prazeres e alegrias levam as pessoas
a trens e hotéis superlotados, aos
bares abarrotados, com sua música
sufocante e vulgar, aos bares e
espetáculos de variedades, às Feiras
Mundiais, aso Corsos. Não entendo
nem compartilho essas alegrias,
embora estejam ao meu alcance,
pelas quais milhares de outros
anseiam.”

“Sou na verdade o Lobo da Estepe,
como digo tantas vezes - aquele
animal extraviado que não encontra
abrigo nem alegria nem alimento
num mundo que lhe é estranho e
incompreensível.”

“Volta ao todo, anulação do
dolorosa individualidade, chegar
a ser Deus, quer dizer: Ter dilatado
a alma de tal forma que se torne
possível voltar a conter novamente
o todo.”

“ Um homem capaz de compreender
Buda, um homem que tem noção
dos céus e dos abismos da
natureza humana, não deveria
viver num meio em que domina
o senso comum, a democracia e a
educação burguesa. Só por covardia
continua a viver nele, e quando
suas dimensões o oprimem, quando
a estreita cela do burguês se torn
a demasiado apertada, ele atribui isto
ao “lobo” e não quer aperceber-se
de que as vezes o lobo é a sua
parte melhor.”

H.H.

Imagem: Eduardo Souza

Texto HH

“ Pois todos os que com ele se deram viram apenas uma das partes de seu ser. Muitos o estimaram por ser uma pessoa inteligente, refinada e arguta, e mostraram-se horrorizados e desapontados quando descobriram o lobo que morava nele. E assim tinha de ser pois Harry, como toda pessoa sensível, queria ser amado como um todo e, portanto, era exatamente com aqueles cujo amor lhe era mais precioso que ele não podia de maneira alguma encobrir ou perjurar o lobo. Havia outros, todavia, que amavam nele exatamente o lobo, o livre, o selvagem , o indômito, o perigoso e o forte, e estes achavam profundamente decepcionante de deplorável quando o selvagem e perverso se transformava em homem, e mostrava anseios de bondade e refinamento, gostava de ouvir Mozart, de ler poesia e acalentar ideais humanos. Em geral, estes se mostravam mias desapontados e irritados do que os outros, e dessa forma o Lobo da Estepe levava sua própria natureza dual e discordante aos destinos alheios toda vez que entrava em contato com as pessoas. " HH

Texto - HH 2

“ A esse propósito há que acrescentar algo. Muita gente existe que se assemelha a Harry; especialmente muitos artistas pertencem a essa classe de homens. Todas essas pessoas tem duas almas, dois seres em seu interior; há neles uma parte divina e uma satânica, há sangue materno e paterno, há capacidade para a ventura e para a desgraça, tão contrapostas e hostis como eram o lobo e o homem dentro de Harry. E esses homens, para os quais a vida não oferece repouso, experimentam às vezes em seus raros momentos de felicidade tanta força e tão indizível beleza, a espuma do instante de ventura emerge as vezes tão alta e deslumbradora sobre o mar da dor, que sua luz, espargindo radiância, vai atingir a outros com o seu encantamento. A isto se devem, a essa preciosa e momentânea espuma sobre o mar do sofrimento, todas aquelas obras artísticas em que o homem solitário e sofredor se eleva por uma hora tão alto sobre o seu próprio destino, que sua felicidade brilha como uma estrela, e parecem a todos os que a vêem como algo eterno e como se fosse seu próprio sonho de ventura. Todas essas pessoas sejam quais forem seus atos e obras, não tem propriamente uma vida, ou seja, sua vida carece de essência e forma, não são heróis, nem artistas, nem pensadores da maneira como os demais homens são juizes, doutores, sapateiros ou mestres; sua existência é um movimento de fluxo e refluxo, está infeliz e dolorosamente partida e é sinistra e insensata, se não estivermos propensos a ver um sentido precisamente naqueles raros acontecimentos, ações, pensamentos e obras que brilham as vezes sobre o caos de semelhante vida.” H.H.